* Por Gabriela Raymundi e Alexandre Elman Chwartzmann
Quem escuta o termo blockchain, tende a associá-lo quase imediatamente a sistemas de pagamento envolvendo criptomoedas (como a Bitcoin). Porém, essa não é a única funcionalidade da tecnologia.
Em síntese, blockchain funciona como um livro de registros público: sempre que seus usuários realizam uma transação, estas serão registradas, analisadas para verificar sua veracidade (automática e simultaneamente por todos os computadores que têm acesso a tecnologia) e armazenadas em blocos (daí o seu nome). A sua ideia é eliminar intermediários – no caso das criptomoedas, os bancos centrais – e aproximar indivíduos que desejam trocar informações de forma segura.
A realização de transações dessa natureza traz consigo oportunidades para facilitar diversos outros processos considerados burocráticos ou de difícil realização, como o registro de documentos públicos, formalização de contratos, envio e armazenamento de dados pessoais, e – por que não? – registro de direitos autorais.
A Lei 9.610 – a Lei dos Direitos Autorais –, que trata desse tema, foi publicada em 1998, estabelecendo a mesma regra para registros que a lei precedente, a Lei 5.988, de 1973. Ainda que isso não signifique a lei como um todo seja obsoleta, é lógico que ela não considerou todas as possibilidades tecnológicas disponíveis nos dias de hoje.
Assim, esse artigo tem por objetivo analisar as vantagens e desvantagens da utilização de blockchain para registro de direitos autorais e qual a segurança que esse registro pode fornecer aos autores.
O que são direitos autorais?
Direitos autorais é o ramo da propriedade intelectual que confere ao autor proteção sobre obras literárias, artísticas e científicas, tais como livros, músicas e fotografias (“as criações do espírito”). A Lei dos Direitos Autorais (LDA) elenca quais as criações são passíveis de proteção, especificando os direitos patrimoniais e morais conferidos aos seus titulares, bem como as suas limitações.
Qual é o procedimento para registro de obras intelectuais?
As disposições sobre o procedimento para registro de obras intelectuais são tratadas no Capítulo III da LDA. Inicialmente, vale referir que não é necessário realizar o registro para se obter direitos autorais sobre uma obra.
Contudo, o registro é uma forma de garantir ao autor uma declaração de autoria, além de poder ser usado como prova em caso de eventual disputa pela autoria.
Caso o autor deseje registrá-la, deverá depositá-la na Biblioteca Nacional, na Escola de Música, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Instituto Nacional do Cinema, ou no Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (‘CONFEA’), de acordo com o tipo de obra.
Quais as vantagens e desvantagens o registro de direitos autorais por blockchain pode oferecer?
O registro por blockchain oferece vantagens e desvantagens, algumas delas específicas para direitos autorais e outras decorrentes do sistema como um todo.
Dentre as vantagens, é possível citar:
- Base de dados e transparência: além de criar uma base de dados pública, a chance realizar mudanças em um arquivo de blockchain forma indetectável é pequena. Já existem plataformas de registro com acesso rápido e alto nível de confiabilidade no mercado;
- Preservação da obra: as informações de blockchain são armazenadas de forma descentralizada – são registradas em todos os dispositivos que suportam essa tecnologia. Assim, o risco de um acidente eliminar o registro daquela obra é exponencialmente menor do que se está estiver preservada fisicamente em um local, ou virtualmente em uma rede particular ou mesmo pública de computadores;
- Registro de autoria: ao compartilhar-se um arquivo por blockchain, registra-se automaticamente a data e horário daquele compartilhamento. Em um sistema de direitos autorais como o brasileiro, que não segue a lógica de first come, first served, isso pode ser importante para a determinação de autoria;
- Agilidade: para registrar uma obra hoje, é necessário realizar a entrega da obra física para arquivamento, inclusive para as obras disponibilizadas apenas em meios digitais, junto com outros documentos impressos (sistema da Biblioteca Nacional e CONFEA). Com a tecnologia blockchain, assim que a obra é inserida no sistema, a informação ficará disponível automaticamente, junto com a autoria, data, horário e permissões de usos;
- Cadeia de distribuição: pela forma como a tecnologia é estruturada, é possível acompanhar toda a cadeia de transmissão da obra, inclusive programando se ela pode ser transmitida novamente ou não. Se uma pessoa adquire um livro em formato digital, por exemplo, não é possível que ela envie o mesmo arquivo a terceiro sem que essa transação fique registrada, facilitando a identificação de distribuição não autorizada, se for o caso;
- Distribuição de músicas: hoje, o pagamento de royalties por execução de músicas é feito de seguinte forma: o Escritório Brasileiro de Direitos Autorais (ECAD) cobra uma taxa relativa a direitos autorais de quem pretende executar gravações e repassa esse valor às associações (que repassam aos autores). Contudo, dada a dificuldade de saber se e quantas vezes uma música foi reproduzida, em determinados casos, o ECAD costuma realizar uma estimativa por amostragem (quanto determinado artista é famoso em determinado segmento, por exemplo). Não é incomum que por meio desse processo os artistas menos conhecidos sejam prejudicados. No caso de registro e distribuição por blockchain, é possível saber com exatidão quando uma música é reproduzida e o processo de repasse se torna mais transparente e preciso;
- Acesso a novas obras: ao eliminar parte da burocracia de revelar e proteger uma obra, a blockchain pode criar um incentivo a criadores, que não necessariamente precisariam de um intermediário para divulgar aquilo que produzem.
Já em relação às desvantagens:
- “Informalidade”: conforme mencionado, a LDA indica o procedimento para obtenção do registro legalmente válido de uma obra. O registro de obras por meio de sistema blockchain ainda não tem a mesma validade destes procedimentos, sendo menos seguros dos ponto de vista jurídico do que o registro tradicional.
Observação: cumpre lembrar que o registro de obra pelos métodos tradicionais confere apenas a presunção de autoria (em eventual disputa, é a outra parte que deve provar que um indivíduo não é o autor) e não deve ser confundido com o registro de propriedade industrial, como marcas e patentes (para o qual é feita análise e busca de anterioridades).
- Novidade: blockchain ainda é um sistema relativamente desconhecido (e, portanto, pouco utilizado se comparado a outros). Isso significa que este sistema ainda novo ainda precisará ser explicado aos julgadores que irão decidir eventuais conflitos relacionados;
- Estágio de desenvolvimento: na mesma lógica que o problema anterior, a tecnologia não se encontra em um estágio que permita o uso indiscriminado por todos. Quando se pensa especificamente sobre direitos autorais, é impossível ignorar que não existe um sistema padrão para esse registro e sua verificação, correndo-se o risco de criar um processo desorganizado;
- Falta de regulação: o sistema de blockchain como um todo não é regulado no Brasil (ainda que haja regulamentação pontual sobre determinados aspectos, como a regulação do mercado de criptoativos, comentada pelo time do B/LUZ aqui). Desse modo, não é possível prever quais serão as limitações legais e judiciais sobre o assunto, que possam eventualmente impossibilitar seu uso.
Algum órgão ou empresa realiza registro por blockchain no Brasil?
Desde 10 de junho de 2020, a Câmara Brasileira de Livros (organização não governamental responsável pela emissão do ISBN) passou a oferecer o registro de direitos autorais por blockchain de obras literárias e artísticas, tais como textos, músicas, livros, ilustrações, roteiros e até mesmos contratos.
Conclusão
Da análise dos pontos pertinentes, é possível perceber que, ao mesmo tempo que o blockchain se apresenta como uma opção viável para auxiliar ou mesmo substituir o modelo atual de distribuição e fiscalização de direitos autorais, ele ainda não é capaz de conferir segurança jurídica para um autor.
Não obstante, seja por meio de blockchain ou de outro sistema diferente daqueles previstos na LDA, conforme o tempo avança e as opções aumentam, é sempre possível repensar o formato do sistema de proteção a direitos autorais, buscando torná-lo mais simples e ágil, a fim de beneficiar os criadores.
* Gabriela Raymundi é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integra a área de Propriedade Intelectual do B/Luz Porto Alegre. Alexandre Elman Chwartzmann é advogado com atuação na área de Transações de Tecnologia, tendo se aprofundado em questões relacionadas à propriedade intelectual e tecnologia da informação.