* Por Ricardo Cavallini
O cenário mudou rapidamente. Precisamos criar soluções diferentes em prazos antes inimagináveis. Problemas novos que demandam soluções novas. Prototipar com equipes enxutas multidisciplinares, errar rápido de forma ágil. A colaboração é a palavra de ordem, seja entre pequenos grupos ou entre startups e grandes empresas.
O parágrafo anterior caberia em qualquer publicação sobre gestão ou transformação digital nos últimos cinco anos. Porém, estamos falando sobre a crise do novo coronavírus e nossa necessidade emergencial de ajudar a diminuir os efeitos do colapso no sistema de saúde.
Makers do mundo todo têm criado soluções maravilhosas. Tem projetos de válvula de respirador, projetos de máscaras de respiração e protetores faciais, válvulas bifurcadas para usar o mesmo equipamento para dois ou mais pacientes. Tem soluções bem criativas, como uma válvula para transformar uma máscara de snorkel (mergulho) em respirador.
Makers italianos estão produzindo por menos de US$ 1 uma válvula que era vendida por US$ 11 mil. Sim, eu sei que existem custos de projeto, de desenvolvimento, de certificações, de produção do molde de injeção de plástico e tudo mais. Mas de US$ 11 mil para US$ 1, esses “senões” perdem sentido.
Dando ou não certo, essas iniciativas mudarão a percepção de valor e de expectativa do mercado e das pessoas. Quanto será que custaria a inovadora válvula quando importada no Brasil para ser usada no SUS? Essa pergunta te doeu o estômago? Pois é.
Tem inclusive projetos mais complexos que misturam eletrônica e mecânica para criar ventiladores e respiradores inteiros. Muita gente diferente trabalhando nessa solução. O MIT, a Tesla, startups e várias empresas privadas de pequeno e grande porte. Aqui no Brasil, conheço pelo menos seis projetos diferentes.
Na minha opinião, a maioria desses projetos não será funcional e poderá causar mais dano do que benefícios para os pacientes. A maioria não verá a luz do dia ou, se vir, não será usada de fato pelos médicos. Não porque os makers não sejam bons; pelo contrário, são ótimos. Com muita inteligência e criatividade eles estão criando soluções a toque de caixa que demorariam anos em uma situação tradicional.
A ironia é que a maior falha está vindo justamente de uma das melhores qualidades da cultura maker, são projetos cuja colaboração foi apenas até a página 2. A culpa não é dos makers, e sim de quem deveria estar coordenando essas ações: o governo, seja ele municipal, estadual ou federal.
Um equipamento complexo como o respirador demanda envolver várias frentes diferentes, entre médicos, makers, hospitais, indústria e certificadores para garantir que o projeto atenda todas as necessidades e seja seguro para o uso dos pacientes.
Hoje temos engenheiros de diferentes áreas, designers, programadores e gerentes de projeto. Mas faltaram os médicos para dizer exatamente quais as necessidades de um respirador para o problema atual. Faltaram as indústrias que posteriormente produzirão o produto em escala. Características no projeto podem mudar enormemente a facilidade ou dificuldade de se fazer isso. Você prefere um projeto que custe R$ 500 e seja possível produzir 30 unidades por dia ou um que custe R$ 800 e seja viável produzir milhares por dia?
Com uma enxurrada de problemas urgentes durante esta crise, governos poderão contar com os makers para arregaçar as mangas e ajudar, mas não basta injetar dinheiro apenas durante a crise. Mais do que nunca é preciso planejar antes, investir antes e liderar durante.
A liderança precisa se adaptar, evoluir: te fez lembrar novamente o mundo corporativo? Pois é. Este texto cabe a ambas as frentes, a pública e a privada.
E, para as próximas crises, sejam elas corporativas ou da sociedade, precisamos nos preparar direito. Vamos precisar novamente de respiradores e máscaras? Não sei. Muito provavelmente serão necessidades completamente diferentes. Uma nova epidemia? Uma catástrofe ambiental? Uma invasão alienígena?
Não importa. O que importa é que precisamos aprender com os nossos erros e acertos.
Em 2011, depois do desastre em Fukushima, um grupo de makers criou um contador Geiger de baixo custo para medir a radiação em diferentes locais da cidade. Hoje a rede Safecast se tornou uma organização voluntária com a o maior banco de dados de medição de radiação pelo mundo.
A única certeza que eu tenho é que precisamos de mais makers. Nas empresas, nos hospitais, na sociedade. Isso se faz com espaços maker, com treinamento e com mudança de mindset.
Assim como na tal transformação digital, a mudança tem base tecnológica, mas ela é cultural e de negócios. Os espaços makers não podem ser iniciativas isoladas, é preciso inserir eles dentro do coração das empresas e da sociedade.
Boa parte dos makers existentes, apesar de muito bem-intencionados, nunca trabalhou em uma empresa e, portanto, nunca lidou com necessidades de negócios, com clientes, com as leis de mercado, a burocracia e todas as dificuldades que executivos foram treinados para lidar. Como já aprendemos nas empresas com iniciativas de inovação, criar um time separado não é a solução.
Alguns hospitais pelo mundo já têm espaço assim e eles já são usados para criar soluções de problemas pontuais. Usam impressoras 3D, cortadoras a laser, circuitos e sensores para soluções das mais simples, como, por exemplo, aumentar o conforto de um paciente, as mais complexas, como imprimir em 3D um suporte para a traqueia de um recém-nascido com problemas para respirar sozinho.
A boa notícia é, se fizermos esse investimento agora, ele não será útil apenas para as grandes crises. Formar novos makers iria gerar inovação como nunca vimos antes, criando novos produtos, novas empresas e novos empregos.
* Ricardo Cavallini é um dos pioneiros do movimento maker no Brasil, autor de seis livros que abordam tecnologia, negócios e comunicação, professor da Singularity University e embaixador MIT Sloan Management Review Brasil. Foi um dos apresentadores do Batalha Makers no Discovery Channel (Brasil e Latam) e criou o Rute, o kit educacional eletrônico aberto, ecológico e acessível.