* Por Henrique Telles Vargas
Com a pandemia mundial ocasionada pelo coronavírus (Covid-19), inegavelmente se instalou o “estado de crise”. A situação socioeconômica é preocupante, com isto ressurgem antigas tarefas de interpretação e aplicabilidade do direito posto. As medidas de contenção e cautela recomendadas, do afastamento, isolamento social ao lockdown, já trazem reflexos financeiros negativos aos empresários, principalmente ao micro e médio empreendedor, bem como a maioria dos profissionais autônomos.
Neste cenário, urge a necessidade de se discutir a respeito da possibilidade de revisão e/ou resolução dos contratos civis e empresariais. A legislação civil vigente prevê a possibilidade de modificar as “regras” dos contratos civis e empresariais, medida aplicável quando acontecimentos extraordinários e imprevisíveis resultam no desequilíbrio da relação jurídica, tornando a prestação de uma das partes do contrato excessivamente onerosa.
Após a denominada Lei da Liberdade Econômica – Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019 -, a qual teve origem na MP nº 876/2019 e posteriormente na MP nº 881/2019, foi inserido o artigo 421-A no Código Civil, que reforça a essência da teoria da imprevisão. Basicamente o recente dispositivo prevê a mitigação de consequências resultantes de situações excepcionais, que afetem de maneira significativa e tornem o contrato civil ou empresarial excessivamente oneroso. Na ocorrência deste cenário prestigia-se a adoção do artigo 479, o qual prevê a renegociação das condições contratuais, sendo o artigo 479, uma das positivações da teoria da imprevisão no Código Civil de 2002.
A teoria da imprevisão é destaque entre os fundamentos legitimadores de revisão e/ou resolução de contratos. Sua aplicação carece de análise casuística, principalmente da natureza da relação e suas peculiares consequências, mas basicamente tem a finalidade de evitar o desequilíbrio contratual nas relações jurídicas. A base da teoria da imprevisão é empregada diariamente na vida cotidiana, ou seja, toda vez que uma situação ulterior torna-se apta a ensejar uma situação de desequilíbrio, nasce uma proposta de modificação desta relação, não é verdade?
Os romanos se referiam à teoria como cláusula rebus sic stantibus. À época surgiram os primeiros textos legais no escopo de limitar o desequilíbrio contratual, manter a função social dos contratos, ainda que para tanto fosse necessário mitigar a autonomia da vontade das partes. No direito Canônico a motivação final seria a “moral cristã”, que considerava injusto o lucro derivado de alteração de situação posterior àquela em que a avença foi contratada.
A base teórica permaneceu pouco modificada ao longo de seu desenvolvimento, apenas sua parte externa (aplicação) foi modificada. Os juristas da idade média defendiam a aplicação da teoria da imprevisão aos contratos de execução diferida, pois inegável é a possibilidade de que a atmosfera de celebração do contrato pode ser uma, porém a de sua execução/cumprimento pode ser outra, bem diferente.
No Código Civil de 2002, a teoria da imprevisão foi expressamente positivada nos artigos 478; 479; 480 e 317. No entanto não se encontra dispositivo correspondente expresso no código antecessor. Alguns doutrinadores renomados defendiam que o antigo Código Civil reconhecia a teoria em seu artigo 1.226, Inciso I.
Após a publicação da Lei da Liberdade Econômica e a inserção do artigo 421-A ao Código Civil, se reforçou um antigo entendimento já amplamente discutido na literatura, “estabelecendo” o princípio da paridade e simetria dos contratos civis e empresariais até surgirem elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, podendo neste caso:
I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Na verdade, o recente dispositivo materializou o entendimento que já prevalecia sobre o tema, acerca da excepcionalidade da medida ser analisada sob o manto da imprevisibilidade, boa-fé, equilíbrio contratual e suas consequências às partes.
Porém, a ideia inicial da Lei da Liberdade Econômica era muito mais abrangente, pois visava mitigar fortemente o Princípio da Intervenção Mínima através do uso de conceitos jurídicos abertos e indeterminados, sem dialogar com antecedentes doutrinários e jurisprudenciais. Os artigos 480-A e 480-B, frutos da MP nº 881/2019, que foram posteriormente revogados pela própria Lei da liberdade Econômica, tratavam da possibilidade de revisão contratual em relações interempresariais.
Deu-se, portanto, um acertado passo atrás, privilegiando a autonomia da vontade das partes no momento de contratar e consequentemente ao Princípio da Intervenção Mínima. Oportuno destacar que a revisão contratual em relações civis e empresárias carece de um maior rigor para ocorrência de intervenção judicial do que nas relações de consumo. Tanto é que diversos fenômenos econômicos – variação cambial, inflação, plano econômicos -, não são aptos a caracterizar tal “imprevisão”.
Fato inegável é que o atual momento enseja e dá legitimidade à revisão de diversos contratos, e que ao longo da história a teoria da imprevisão ganha força nos tempos de crise, tanto é verdade que a partir do século XVIII a teoria da imprevisão esteve afastada do olhar dos tribunais, ressurgindo na Primeira Guerra Mundial, sobretudo no âmbito da jurisprudência.
Em tempos de “guerra” contra a covid-19, não há dúvidas que muitos contratos serão revistos, no entanto segue imprescindível a necessidade de existir uma inequívoca mudança substancial da base contratual, assim como a comprovação da impossibilidade de adimplemento. Acima de tudo, a fim de não levar ao Poder Judiciário uma avalanche de discussões jurídicas indecifráveis, deve prevalecer o bom senso nas negociações.
* Henrique Telles Vargas é especialista em Direito Empresarial – OAB/SC 36.048.