* Por Marcos Thiele
Quando eu estudava engenharia de produção, nos idos de 1990, havia uma matéria chamada “tempos e movimentos”. Eu achava incrível poder detalhar analiticamente cada ação para encontrar a maneira mais produtiva e eficiente possível de se executar uma tarefa. Só não imaginava me colocar no lugar daquele operário, ou caixa de banco, que teria que executar aquela mesma rotina, dia sim, dia também. Tempos e movimentos é um resquício do taylorismo e da “administração científica” do trabalho, surgidos no início do século XX, e que ganharam corações e mentes de seguidas gerações de gerentes, chefes, consultores e pesquisadores.
De um certo modo aqueles chamados de “colarinho branco” (trabalhadores de escritórios, os gerentes por exemplo) consideravam justo e normal que os outros, de “colarinho azul” (isto é, operários que vestiam uniformes na linha de produção), fossem submetidos a esta esterilização do trabalho em nome da produtividade.
Como decorrência, métodos e ferramentas de monitoramento do trabalho foram desenvolvidos e aperfeiçoados, a começar pelo relógio de ponto, passando pelos apontamentos, pela vigilância nas pausas, e pelos indicadores de produtividade. Neste mundo do chão de fábrica, dos armazéns, dos caixas, sempre houve um grande número de reclamações sobre a falta de autonomia, sobre a rigidez das métricas utilizadas, sobre a perda de sentido do trabalho. Porém a normalização que fizemos, similar a uma construção social de castas nas empresas, nos distanciava desta realidade.
Nos últimos anos, com a pandemia e o avanço do trabalho remoto, a administração do trabalho pautada pelo controle obsessivo e maximização da produtividade imediata começou a atingir mais fortemente os trabalhadores de colarinho branco, os operários da informação nesta era do conhecimento.
Em suas casas, as pessoas se conectam aos computadores para trabalhar, e são continuamente monitoradas por programas – denominados “bosswares” – que contam cliques e movimentos no mouse, tempo de tela, uso do teclado, número de emails enviados, tempo de duração das reuniões, linhas de código, e até tiram fotos aleatoriamente. Estes programas estão também potencialmente instalados nos celulares, e alguns utilizam dados de GPS para monitorar deslocamentos. O relógio de ponto deixou de ser passivo, e agora é um agente ativo que está te observando continuamente.
O objetivo é duplo: evitar fraudes e medir a produtividade. Quanto ao primeiro, pequenos golpes sempre existiram, mesmo em ambientes presenciais, e de fato há uma crescente massa de trabalhadores que se multiplica em mais de um “emprego”. A questão da integridade no contrato entre a empresa e o funcionário é válida, mas resta um questionamento: se houvesse maior vínculo de confiança, seria possível uma outra forma de resolução desta natureza de questão?
Quanto à produtividade em si, há necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre o seu significado no âmbito da cultura e da estratégia de desenvolvimento organizacional. Algumas das perguntas-chave que precisam ser avaliadas são: o que é de fato produtividade para além de um índice de curto prazo? Como as atividades executadas geram valor para os clientes da empresa? Como podemos medir o impacto e o valor de atividades relacionais e não-programáveis? Como podemos induzir inovação e criatividade em um ambiente de monitoramento de entregas pré-programadas? Será que compreendemos como a eficiência de curto prazo reduz a resiliência da empresa em um ambiente incerto? Qual o significado que uma vigilância obsessiva tem no ambiente da organização e na percepção de vínculo dos colaboradores? Será que é uma prática coerente com nossa cultura?
São questões que exigem tempo conjunto de ponderação da liderança para que respostas coerentes emerjam, e esse talvez seja o recurso mais escasso de uma organização. Na ausência destas considerações estratégicas usualmente se administra por meio de objetivos e metas quantitativas simplistas, que não passam perto de espelhar as reais relações e atividades de geração de valor. Turbinados pela crescente facilidade de captura de dados, e na ilusão de que são equivalentes a compreensões, perenizamos um modelo de gestão repleto de números e carente de significado.
A tecnologia da informação provê os meios para um bastante real grande irmão de Orwell, mas há que se considerar os impactos deste controle intrusivo. Duas das tendências pós-pandemia mais presentes e discutidas são o “burn-out” – esgotamento derivado de um prolongado e excessivo esforço – e “quiet-quitting” – demissão silenciosa, o movimento de não fazer mais do que o estritamente necessário e contratado para permanecer empregado.
Ambas são sintomas do esgotamento de um modelo econômico que tem como instrumento de execução a administração do trabalho tradicional. A vigilância obsessiva tem um papel estruturante neste contexto de aumento da pressão por (algum tipo de) desempenho, cobrança por entregas cada vez mais rápidas, carência de sentido maior, que acabam por levar à acelerada redução do trabalho a uma ação estritamente transacional, em que a vinculação do colaborador com a organização se torna débil, pois reside apenas na segurança econômica.
O que podemos aprender com este novo avanço do comando e controle na administração? Por um lado, pode ser mais um passo no sentido de esterilizar o trabalho, destituindo-o de significado. Para as empresas embarcadas nesta onda, a vigilância obsessiva e suas métricas discutíveis vão explicitar uma pobre filosofia de gestão, reduzindo a atratividade de talentos e, ao final, diminuindo a probabilidade de adaptação e desenvolvimento em horizontes mais longos.
De outro modo podemos guardar a esperança de que a explicitação de práticas de desumanização do trabalho em um número cada vez maior de camadas nas empresas provoque um movimento de reflexão e ajuste, que traga consciência para a necessidade e relevância de um modelo de administração do trabalho pautado pela confiança e autonomia.
Talvez a experiência comece a mostrar que as pessoas buscam e merecem um grau de sentido profissional que abranja a satisfação de colocar em serviço suas principais competências, o senso de pertencimento a um ambiente de relações sadias, e a sintonia de valores com uma organização que se integra às necessidades do mundo atual. Estas pessoas trabalham de forma naturalmente engajada, não por conta de metas e controles, mas por sentir e ter construído um significado próprio para o ato de trabalhar.
* Marcos Thiele é sócio da Adigo Desenvolvimento, formado pela Escola Politécnica da USP, mestre em administração pela Faculdade de Economia e Administração da USP, formado em consultoria e facilitação pela Adigo e Coach pelo Instituto Ecosocial