*Por Carine Roos
Mulheres e meninas não estão seguras em casa, no trabalho, na escola, nos hospitais, nas igrejas, nos consultórios médicos em nenhum lugar. Se você conversar com mulheres você verá que todas elas possuem um relato de violência. E não é razoável que todas as mulheres tenham um relato de violência para contar.
Não é razoável ver o outro sempre como uma possível ameaça. Não é razoável que essa desconfiança seja presente, recorrente e onipresente na vida de tantas mulheres. O desabafo acima é de uma colega jornalista e apresentadora da Rádio Band News FM, Gabriela Mayer, e é impossível não se reconhecer em suas palavras e ecoá-las.
Mais uma vez, nos deparamos com uma notícia de estupro e a convicção de que não é razoável que não haja segurança, respeito, dignidade e liberdade às mulheres em nenhum espaço.
Giovanni Quintella Bezerra foi preso em flagrante durante um plantão em um hospital público de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, acusado de abusar sexualmente de uma paciente que dava à luz. Isto só foi possível porque as mulheres da equipe que faziam a operação suspeitaram do comportamento do médico e o filmaram com um celular escondido.
As imagens foram feitas no terceiro atendimento do anestesista no dia. Para fazer a gravação, as colegas de trabalho conseguiram trocar a sala, esconder o telefone em um armário de vidro e, então, poder confirmar o crime.
Toda essa estratégia foi necessária, pois o patriarcado está presente em todos os espaços, especialmente no setor médico onde há uma alta assimetria de poder entre médicos e equipe de enfermagem. Apenas denúncias não seriam suficientes. A palavra da mulher nem sempre é considerada como válida perante os olhos da Justiça. E por se tratar de uma relação altamente desigual de poder, é muito provável que elas poderiam sofrer algum tipo de represália, caso não tivessem provas reais.
O fato abominável está longe de configurar uma situação isolada. Números do Instituto de Segurança Pública, obtidos pelo jornal o GLOBO via Lei de Acesso à Informação, apontam que foram computados no estado 177 casos de estupro em “hospital, clínicas ou similares” entre 2015 e 2021. Em média, é como se, ao longo desses sete anos, uma pessoa fosse abusada em uma unidade de saúde do Rio a cada duas semanas.
Sabemos, ainda, que esse dado é imensamente maior para as mulheres pretas. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2018, mulheres pretas e pardas totalizaram 65% dos óbitos maternos no Brasil. Entre 1996 e 2018, foram registradas mais de 38 mil mortes maternas, sendo 67% decorrentes de causas obstétricas diretas, como intervenções desnecessárias, omissões e tratamentos incorretos.
Um centro cirúrgico deveria ser um espaço onde as mulheres se sentissem acolhidas. O hospital onde tudo aconteceu diz ser ainda especializado em atendimento para o público feminino. Na verdade, não há nenhum lugar seguro para as mulheres. Não podemos frequentar consultórios sem o medo de ser tocada indevidamente pelo médico; buscar conforto espiritual sem ter os nossos corpos tocados; andar de ônibus sem ser `’encoxada”; usar a roupa que queremos sem receber “cantadas” desrespeitosas.
Com tantos anos acompanhando, apoiando e estudando as questões de gênero, ainda ouço relatos diários de mulheres sendo desrespeitadas dentro das organizações, onde presenciam micro agressões como desqualificação e interrupção de suas falas em reuniões, piadas sexistas e invalidações com atitudes arrogantes até assédio moral e sexual. O espectro de agressões contra as mulheres está longe de terminar. E para isso, precisamos urgentemente de lideranças mais compassivas e humanas. Precisamos urgentemente de homens conscientes aliados para a mudança efetiva acontecer.
Não podemos mais tolerar tanta barbárie. Devemos usar toda a força que nos resta para dar um basta neste tipo de tratamento odioso e absolutamente brutalizante que estamos vivendo.
* Carine Ross é especialista em Diversidade, Equidade e Inclusão , e CEO e fundadora da Newa Consultoria