* Por Beatriz Nunes Cloud e Fernando Kjekshus Rosas
O crowdfunding de investimentos, modalidade de captação de recursos disponível para sociedades empresárias de pequeno porte, por meio da realização de ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários cursadas e operadas em plataforma de investimento participativo, regulada pela Instrução CVM nº 588, teve suas regras flexibilizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (a “CVM”) recentemente.
A referida flexibilização ocorreu através da Resolução CVM nº 04, publicada no dia 20 de agosto de 2020, motivada pelo cenário crítico causado pela pandemia de covid-19, que gerou retração econômica e impactos diretos à operação e atividades de diversas empresas, em especial as micro e pequenas, as quais usualmente já operam com menos folga de caixa e, em regra, encontram maior dificuldade para obtenção de recursos nos modelos tradicionais de crédito e financiamento.
Com tal flexibilização, a CVM pretende permitir o acesso de micro, pequenas e médias empresas (as “MPMEs”) no mercado de capitais, para captação de recursos via emissão de valores mobiliários (equity e/ou dívida) em ofertas realizadas por intermédio das plataformas de investimento coletivo, sendo esta uma possibilidade de fonte alternativa ou complementar para o financiamento de capital de giro e manutenção das operações de tais empresas durante o cenário de dificuldades causado pela pandemia de covid-19.
A primeira flexibilização trazida pela Resolução CVM nº 04 foi em relação ao período de apuração da receita bruta auferida pela sociedade ofertante. Na regra original, o inciso III do artigo 2º da Instrução CVM nº 588, estabelece o limite de receita bruta em R$ 10 milhões, apurada no exercício social anterior. Já a Resolução CVM nº 04 permite, em adição ao texto original da regra, que a apuração da receita bruta seja realizada em balanço intermediário entre o período de 01/01/2020 e 30/06/2020, com limite de até R$ 5 milhões.
Com esse método alternativo de apuração de receita bruta, o regulador permite que empresas que não estavam enquadradas no conceito de sociedade empresária de pequeno porte, com base na avaliação do exercício social anterior, e portanto, não se enquadravam na permissão legal para realização de ofertas públicas dispensadas de registro via plataforma de investimento coletivo neste ano, reavaliassem seu enquadramento com base apenas no primeiro semestre deste ano, arduamente impactado pelos efeitos da pandemia de covid-19.
Desta forma, uma ampla gama de empresas inicialmente impedidas de realizar suas ofertas no formato previsto na Instrução CVM 588 durante o ano de 2020, por possuir receita bruta anual acima de R$ 10 milhões, apurada no exercício social de 2019, podem agora reavaliar tal possibilidade, com base na receita apurada no primeiro semestre.
Além disso, entendeu por bem o regulador flexibilizar ainda o valor alvo mínimo necessário para possibilitar distribuições parciais de ofertas públicas dispensadas de registro, e viabilizadas no formato de crowdfunding de investimento. No modelo original da Instrução CVM nº 588, era necessário que o valor alvo mínimo para distribuições parciais fosse igual ou superior a 2/3 (dois terços) do valor alvo máximo da Oferta em questão. Com a flexibilização, este valor passa a ser equivalente ao montante igual ou superior a ½ (metade) do valor máximo.
Isso significa que ofertas que não tenham a tração e o volume de investimentos inicialmente esperados, ainda assim possam seguir com a possibilidade de oferta parcial, com menor exigência de valores mínimos requeridos para tais distribuições parciais. Novamente, o regulador espera que a flexibilização permita a realização e viabilização de um maior número de ofertas, ainda que de forma parcial, objetivando o acesso mais fácil a captação pelas ofertantes.
Como contrapartida para a utilização do valor alvo mínimo indicado nos parágrafos anteriores, a Resolução CVM nº 04 exige que o documento de informações essenciais sobre a Oferta (requerido nos termos do artigo 8º da Instrução CVM nº 588), seja ajustado para (i) indicar “o tempo estimado, em meses, de suporte às atividades da empresa que seria alcançado no cenário de captação do valor mínimo, e indique se haverá necessidade de complementação do financiamento no curto e médio prazo para viabilizar a continuidade da empresa caso a oferta seja distribuída parcialmente”; (ii) incluir e fazer constar alerta de risco adicional aos investidores, para as distribuições parciais abaixo do limite de 2/3 do valor alvo máximo.
No mais, para as distribuições parciais cujo valor esteja entre a ½ (metade) e 2/3 (dois terços) do valor alvo máximo, a plataforma de investimento participativo deverá garantir que seja concedida uma nova oportunidade para que os investidores desistam do investimento, em adição à possibilidade de desistência padrão do inciso III, do artigo 3º, da Instrução CVM nº 588, resguardando assim a posição do investidor nesses casos.
Em qualquer caso, após o novo período de desistências comentado acima, as ofertas que não observarem volume total de investimentos equivalente a, pelo menos, o valor alvo mínimo, serão canceladas.
Finalmente, a CVM ainda incluiu no pacote de flexibilizações introduzidas pela Resolução CVM nº 04 a possibilidade de oferta de lote adicional em oferta pública realizada por intermédio de plataforma de crowdfunding de investimentos, sendo certo que referido lote adicional deverá obedecer ao limite de 20% do valor alvo máximo. A emissão de lote adicional, conhecida no mercado como hot-issue, destina-se a atender um excedente de demanda pelos papéis ofertados, e não estava prevista na regra original que regula o tipo de oferta aqui tratado.
Cabe dizer, a previsão de lote adicional deve ter sido aprovada por órgão societário deliberativo da empresa ofertante e estar prevista no documento de Informações Essenciais da Oferta. Ademais, o valor total da captação, incluindo o lote adicional aprovado, não poderá ultrapassar o limite anual de captação de R$ 5 milhões, originalmente previsto pela Instrução CVM nº 588, e mantido inalterado pela Resolução em comento.
Por fim, as flexibilizações trazidas pela Resolução CVM nº 04 possuem caráter temporário e são introduzidas em caráter experimental, conforme a própria ementa da Resolução estabelece, e serão válidas apenas para as ofertas reguladas pela Instrução CVM nº 588 realizadas entre a data de entrada em vigor de referida resolução, 20 de agosto de 2020, e 31 de dezembro de 2020.
* Beatriz Nunes Cloud é advogada integrante do time de tech transitions do BVA Advogados, e Fernando Kjekshus Rosas, coordenador da área de Direito Bancário e Investimento Estrangeiro do BVA Advogados.