* Por Helder Galvão
Em 1996, ao lançar o livro The Future of Law, o jurista britânico Richard Susskind introduziu importantes debates no mercado jurídico, cujos efeitos, curiosamente, dado o tempo, são vistos até hoje. Susskind, com destreza, já em outro livro, o Tomorrow´s Lawyers, apontou, em resumo, três mudanças, consideradas como radicais no desempenho das atividades dos advogados.
A primeira foi o desafio do que intitula mais por menos ou o more-for-less challenge, onde as demandas jurídicas crescem em uma escala maior e desproporcional se comparada à disponibilidade e propensão do mercado em pagar por serviços jurídicos.
Essa situação abarca não só as grandes empresas, quanto às firmas menores, individuais. Ou seja, os modelos tradicionais de cobrança praticados pelos advogados em geral, inclusive o sistema de tabelamento proposto pelo órgão que regula a profissão, passa a sofrer um forte movimento de pressão, quiçá questionamento, quanto a sua aplicabilidade. O efeito, por sua vez, é o fenômeno de desuso, na medida em que o próprio mercado jurídico não a adota, tampouco como um parâmetro na relação com o cliente.
Já a segunda, digamos um pouco extravagante para o modelo brasileiro, é a liberalização da prática jurídica. Historicamente corporativista, monopolizada e restritiva, coube ao modelo inglês e galês a inovação de serviço no movimento conhecido como Legal Services Act, de 2007, e que começou a produzir efeitos a partir de 2011.
Foram criadas as ABS’s (Alternative Business Structure), possibilitando investimento externo, private equity e venture capital para escritórios de advocacia. Além disso, retirou a obrigação de que o dono do escritório fosse propriamente um advogado. Diga-se que esse ato normativo foi bem recebido pelo mercado, ao citar famosas firmas de contabilidade do Reino Unido que buscaram licenciar-se como uma ABS.
O ponto, no entanto, dessa liberalização formal e, por consequência, dessa liberalização dos costumes da prática jurídica, está nos novos métodos de cobranças dos serviços jurídicos, que não aqueles cobrados por hora, além da ruptura da ideia de advogados caros, desempenhando as suas funções em estruturas ostensivas, para advogados com maior saber gerencial e comercial, em estruturas mais enxutas.
É de se notar, por sua vez, que a dita liberalização é um caminho apontado por Susskind para o desafio do mais por menos, criando uma prática jurídica mais client-friendly. Susskind tenta prever, ainda, que uma vez provados os benefícios da liberalização em determinado número de países-vanguarda, como o experimentado no Reino Unido, haverá um efeito cascata e os demais acabarão sendo forçados a liberalizar-se também, por motivos de concorrência.
A opinião, contudo, esbarra, naturalmente, pela forte regulação do setor, não muito afeita às mudanças estruturais ou que, de alguma forma, possa interferir no status quo de um segmento umbilicalmente ligado ao conservadorismo.
O terceiro movimento de mudança envolve a manipulação da tecnologia. Susskind não poupa críticas ao comportamento cético da maioria dos advogados, ao qual denomina irrational rejectionism, uma dogmática e visceral rejeição de uma tecnologia da qual o cético nem ao menos possui experiência. Embora o direito em si demore mais a atualizar-se, as tecnologias que servem como plataforma para o direito são muito mais rápidas, exponenciais, e é dever do advogado antecipar-se a essa mudança tecnológica.
O desafio, portanto, não deve ser voltado para a automação de práticas jurídicas já estabelecidas, mas de criar novas práticas, jamais consideradas possíveis até então. Importante notar que grande parte das tecnologias são tidas, embora o termo clichê de disruptivas e, portanto, a mera adoção já configuraria uma mudança radical no atuação do advogado.
Independentemente das três mudanças antecipadas por Susskind, uma das características principais desse movimento de novas tendências na advocacia está na revisão dos modelos clássicos de cobrança, com a adoção de arranjos alternativos, intitulados de alternative fee arrangements ou, até mesmo, arranjos criativos, nas palavras desse articulista.
Esses arranjos vêm no embalo do próprio modelo de negócio estabelecido na era dos bits, ou seja, na tendência das empresas de tecnologia em, antes, oferecer um serviço, para depois cobrá-lo. Para esse movimento foi cunhada a expressão freemium, por Cris Anderson, antigo editor da Revista Wired e um dos criados do famoso TED. Em resumo, trata-se de um modelo de negócio baseado na premissa de que o serviço deve ser oferecido antes de ser cobrado, de modo a cativar o cliente e fideliza-lo tendo em vista a concorrência, a abundância de serviços idênticos e a simetria de preços no mercado jurídico.
No entanto, esse modelo de negócio já se tornou disseminado, inclusive na advocacia, tornando-se um lugar comum e abundante, cuja prática já não é mais um diferencial competitivo. Daí, então, que mais uma vez a visão futurista de Susskind entra em cena quando, já naquele tempo, aponta que um dos caminhos pela captura de novas oportunidades no mercado jurídico deverá passar, necessariamente, pelos sistemas abertos, intitulado de Legal Open-Sourcing.
Em resumo, compartilhar dados e conhecimento jurídico deverá ser gratuito, geralmente numa plataforma de acesso público e irrestrito. Serão disponibilizados contratos, artigos, resenhas e apresentações para livre acesso de qualquer interessado. Esses documentos, por sua vez, perderão o seu status de valorizadas commodities, ou seja, matérias-primas básicas e comercializadas pelos advogados como o seu principal ativo, passando a condição de típicos consiglieres, digo, aconselhando os seus clientes em tarefas mais complexas.
O princípio é o mesmo contido no movimento do software open source ou programas de código aberto, onde o seu criador disponibiliza o código-fonte para livre acesso de terceiros, cabendo a estes promover atualizações, modificações e customizações em geral de acordo com as suas necessidades e interesses. O eixo de valor, como dito acima, passa a ser a expertise do advogado em negociar e aconselhar o seu cliente pela adoção das melhores práticas e cláusulas visando a celebração de um negócio e não mais o mero oferecimento, por exemplo, de um contrato de locação de imóvel como carro-chefe para remuneração dos seus serviços.
Não se pode perder de vista, ainda, que a cultura do compartilhamento, tanto de bens materiais quanto imateriais, torna-se regra no mercado jurídico, cabendo ao advogado do amanhã o desenvolvimento de habilidades diversas daquelas de que um mero copista ou engenheiro de obra feita. Sai de cena, portanto, o profissional que se vale pura e simplesmente de templates e das chamadas cláusulas boilerplates, para aquele profissional com alto poder de negociação e persuasão. O contrato em si perde o seu status de nobreza, já que abundante e disseminado, ou seja, de posse de qualquer um, logo, passando a ser um mero veículo para viabilizar o negócio em si.
De outro lado, o fato de contratos e demais documentos encontrarem-se disponíveis para o livre acesso de qualquer um não representa, necessariamente, no esvaziamento da atuação do advogado. Muito pelo contrário: a adoção dos princípios e respectivos benefícios do open source já são conhecidos e difundidos. É o caso das soluções de código-aberto oferecidas pelo Linux e o VLC, famoso media player. E a lógica é simples. O leigo ou o próprio cliente não dotam de conhecimento específico ou habilidade técnica na leitura e domínio de um contrato. Tê-lo em mãos não necessariamente será sinônimo de independência.
Já no que se refere ao mercado jurídico, é possível identificar práticas ainda tímidas de advogados franqueando os seus acervos para o livre acesso de clientes, profissionais e estudantes em geral. Vai prevalecer e se destacar o desbravador, ou seja, o first mover disposto e aberto a nadar neste oceano azul de oportunidades.
* Helder Galvão é Advogado, Doutorando (com bolsa Capes no Programa de Doutorado Sanduíche com a Universidade de Lisboa) e Mestre pelo Instituto de Economia da UFRJ. Professor na Escola de Direito da FGV Rio. Cofundador do N8, Coletivo de Advogados Para Startups.