* Por Philipe Moura
O período em que estamos vivendo tem se mostrado um dos maiores aceleradores da transformação digital dos últimos tempos. Isso se torna mais um desafio para empresas de todos os portes e setores, que já vêm se esforçando, em ambientes cada vez mais conectados e competitivos, para gerar negócios e mitigar riscos.
Aos governos, cabe a difícil missão de reduzir as falhas de mercado e viabilizar as condições para uma competição saudável – ou seja, de produzir regulamentos que tragam como subproduto segurança jurídica, padronização e confiabilidade em serviços e produtos, sem engessar os mercados.
Essa missão, no entanto, muitas vezes se equipara à pedra de Sísifo; quando o regulamento entra na pilha de “feito” e começa a valer, há boas chances de já estar desatualizado, ou, pior ainda, de causar consequências não pretendidas, e esse regulamento volta (ou precisa voltar) para a pilha de “a fazer”. Vale, então, um breve retorno ao título parafraseado de Fernando Pessoa e que nos possibilitou essa reflexão: mais que nunca, a inovação é inexorável (ou seja, tê-la é preciso); a atividade regulatória, por sua vez, não é uma ciência tão exata assim (ou seja, regular é impreciso).
A transformação no setor privado frequentemente acontece em ambientes de inovação aberta; isso significa que a mudança pode acontecer em qualquer departamento de qualquer empresa e em qualquer lugar do país ou do mundo. E não raro essas inovações, ou minimamente o princípio por detrás delas, tornam-se disponíveis para melhorias incrementais por outros agentes de mercado quase que instantaneamente. Em contraste, o dever regulatório é, por definição, uma tarefa centralizada. Por si só, isso já ajuda a explicar a diferença de agilidade da transformação em cada um dos casos.
Felizmente, reguladores já lançam mão de fóruns governamentais internacionais ou regionais nos quais são discutidas melhores práticas regulatórias. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), por exemplo, participa de reuniões da Comissão Interamericana de Telecomunicações da Organização dos Estados Americanos e, também, da União Internacional de Telecomunicações. A realidade de cada país, no entanto, dificulta ou impossibilita que regulamentos pensados no exterior sejam plug-and-play no Brasil, e a assimetria de informação entre os setores privado e público permanece.
Existem algumas ferramentas disponíveis para o regulador mitigar o risco de a pedra rolar rapidamente para o começo da montanha, tais como análise de impacto regulatório (AIR) e a transparência do processo de criação e revisão de regulamentos, incluindo a possibilidade de ampla participação do setor privado e da sociedade como um todo para contribuir com suas diferentes visões. Mais recentemente, alguns órgãos reguladores vêm testando modelos de sandbox regulatório – tal como estruturas feitas em uma caixa de areia, essas ferramentas criam ambientes controlados para testar ideias inovadoras em pequena escala e avaliar o impacto da regulação (ou da ausência dela).
Finalmente, e não menos importante, existe a autorregulação. Essa possibilidade traz algumas relevantes vantagens, como: redução da assimetria de informação, compartilhamento de responsabilidade social e jurídica, e maior especificidade, agilidade e relevância na revisão ou proposição de novos regulamentos. Para o setor privado, a autorregulação é uma oportunidade para padronizar entendimentos, abordar particularidades de um setor, e, ao mesmo tempo, gerar segurança jurídica e reduzir os custos do compliance.
A autorregulação é, inclusive, prevista na Lei Geral de Proteção de Dados. E a proteção de dados é um tema fundamental para o sucesso de uma transformação digital. Do ponto de vista do regulador, editar normas concernentes a áreas tão distintas como saúde, telecomunicações e mobilidade, por exemplo, será uma tarefa de Sísifo se não houver autorregulação. Já que inovar é preciso, é, pois, tempo de vermos protagonismo dos agentes privados também em temas regulatórios; isso ajudará a reduzir a imprecisão (e, consequentemente, aumentar o sucesso) da atividade regulatória. É um cenário de ganha-ganha.
* Philipe Moura é mestre pela Universidade da Califórnia e sócio-diretor da KPMG no Brasil.