As discussões sobre ressuscitação digital, isto é, trazer ou não de volta personalidades que morreram há muitos anos por meio de tecnologia, não é nova. Em 2012, um show de Tupac Shakur no festival Coachella foi um dos assuntos mais comentados do mundo. A apresentação foi um sucesso e abriu portas para possibilidades infinitas no mundo do entretenimento. Isso porque o rapper, um dos mais relevantes da história do hip hop, morreu 16 anos antes do dia em que “subiu ao palco” do festival. Na música Outro, Tupac canta: “me espere, como você espera que Jesus volte. Me espera, estou chegando”. Mais de 10 anos depois da icônica apresentação, Tupac não foi o único que ressuscitou digitalmente para a alegria – e o espanto – de muitos.
O assunto voltou à tona recentemente, com o comercial da montadora Wolkswagen, que colocou Elis Regina, morta em 1982, para cantar com sua filha, Maria Rita. Enquanto fãs se emocionaram com a homenagem, muitos outros se sentiram incomodados com a personificação da cantora no comercial, alegando que, em vida, Elis jamais teria feito propaganda para a montadora, que colaborou ativamente com a ditadura militar no Brasil.
O uso da tecnologia para a ressuscitação digital de Elis fez com que o Conar – Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária – abrisse um processo para analisar o comercial, após consumidores questionarem se é ético o uso da inteligência artificial para reproduzir a imagem da cantora. O processo analisará se é possível que herdeiros autorizem o uso da imagem da pessoa morta para criar conteúdo inédito, isto é, algo que a pessoa, em vida, não realizou.
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Além de uma questão ética, a ressuscitação digital de personalidades abre discussões também no campo jurídico. É o que explica Gustavo Fortunato D’Amico, advogado especializado em Direito Autoral e Entretenimento: “Quando a nossa legislação foi criada, nosso legislador nem sequer imaginava que isso poderia acontecer. Então, quando a gente fala sobre ressuscitação digital sob a perspectiva da nossa lei, a gente encontra uma lacuna”, diz.
Direito de imagem vs direito de personalidade
Isso porque no Brasil, a legislação brasileira trata dos direitos de imagem e direitos de personalidade por meio de dispositivos previstos em diversas leis, com destaque para o Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002) e a Constituição Federal. O Direito de Imagem é uma extensão do direito à privacidade e intimidade das pessoas e se refere à proteção da própria imagem, ou seja, a reprodução ou divulgação não autorizada da imagem de alguém. Ele também pode abranger a utilização da imagem para fins comerciais, publicitários ou em qualquer contexto que envolva a exploração econômica da imagem de uma pessoa sem seu consentimento.
No Brasil, o direito de imagem é previsto no Artigo 20 do Código Civil, que estabelece que “a imagem de uma pessoa não pode ser usada sem sua autorização.” Isso significa que a divulgação, publicação ou reprodução de imagens de alguém, seja em fotos, vídeos ou outros meios visuais, requer o consentimento expresso dessa pessoa. Já o Direito de Personalidade abrange um conjunto de direitos fundamentais e subjetivos que garantem a proteção da dignidade, intimidade, honra, vida privada, integridade física e moral, nome, identidade, entre outros aspectos inerentes à própria pessoa.
“A pessoa tem Direito de Personalidade a partir do momento em que nasce até o momento em que morre. Entretanto, por ser um direito personalíssimo, ele é inalienável, irrenunciável e intransmissível. Quando o legislador coloca a figura dos familiares no Artigo, isso se dá no sentido de que a família vai proteger aquilo que a pessoa fez em vida. No caso da Elis Regina, isso tem a ver com as fotos que ela tirou, os lugares em que ela apareceu, o que ela escreveu em vida”, explica Gustavo. Por isso, não é claro na legislação se os familiares podem ou não, de fato, autorizar a criação de novos “trabalhos” da pessoa morta, uma vez que isso pode violar o Direito de Personalidade do indivíduo.
Já nos Estados Unidos, o assunto “ressuscitação digital” pode parecer menos complexo, uma vez que não há uma distinção legal precisa e clara entre “direito de imagem” e “direito de personalidade” como ocorre no Brasil e em alguns outros países. A proteção dos direitos que se assemelham aos direitos de imagem e direitos de personalidade é abordada de forma mais abrangente sob o conceito geral de “direito à privacidade”.
Para Gustavo, caso a legislação brasileira não dê a atenção necessária ao tópico, é possível que apenas a ganância de herdeiros fique entre o que a pessoa produziu – e defendeu – em vida e as infinitas possibilidades da inteligência artificial. “Se no futuro for entendido que os herdeiros podem, de fato, utilizar a imagem dessa pessoa para produções inéditas, nada garante que a imagem do falecido será utilizada depois da morte para defender o que a pessoa defendeu em vida”, diz.
Os caminhos legais da ressuscitação digital
Nos últimos dias, o senador Rodrigo Cunha apresentou o PL n° 3592/2023, que visa estabelecer diretrizes para o uso de tecnologia na recriação de áudios e vídeos de pessoas mortas por meio de IA. O texto proposto tenta responder algumas das dúvidas mais importantes sobre esse assunto:, como que ponto é permitido usar a imagem póstuma da pessoa, em que momento a imagem da pessoa falecida é domínio público e, principalmente, se herdeiros podem ou não permitir o uso da imagem.
“Porém, de todo o projeto de lei, o ponto que mais chamou a atenção foi o artigo 6°, pois ele prevê a possibilidade de utilizar imagens e voz recriada para fins legais, como investigação criminal e processos judiciais. Qual a necessidade desse uso? Precisamos compreender que quando falamos sobre material feito por recriação digital, estamos falando de um material essencialmente falso, aquilo não ocorreu (ou se aconteceu não se sabe se foi daquela forma). Permitir o uso desses materiais num processo ou investigação é aceitar a inclusão de material falso e contaminar toda a imparcialidade do processo.
Imagine um júri assistindo a um vídeo hiperrealista do réu matando a vítima do processo em que ele está sendo julgado? Isso é inadmissível, por mais que seja informado que se trata de uma simulação, a apresentação de um material como esse é capaz de, mesmo que de forma inconsciente, influenciar na decisão do júri”, explica Gustavo.
Hoje, famosos já estão tomando providências contra ou a favor do uso de suas imagens e personalidades após a morte. É o caso da Madonna. Segundo o tabloide The Sun, a rainha do pop mudou as regras sobre sua herança e incluiu rígidas normas sobre o uso de sua imagem, incluindo hologramas e outras formas de IA para ressuscitação digital, o que a estrela entende como um uso “questionável” da sua imagem.
Mas não são só famosos que devem se questionar sobre o uso de suas imagens após a morte. Em abril, um designer chinês utilizou um programa de inteligência artificial para recriar sua avó, falecida no início do ano. O programa recriou a aparência, voz, o sotaque e até a personalidade da idosa, a partir de várias fotos e vídeos da mulher. As conversas entre o neto enlutado e a avó reproduziram conversas cujas respostas seriam, provavelmente, muito parecidas com as que a senhora daria. Para ele, foi uma “ilusão reconfortante”.
Para as pessoas que ainda estão vivam, é importante agora pensar no inimaginável: se a pessoa permite ou não que seja trazida de volta à vida, pelo menos em partes, por meio da tecnologia. “E para quem já morreu, como essa regra se aplica?”, questiona o advogado. Para ele, se não houve um “sim” claro para o tema, em vida, então a resposta é “não”. E você, gostaria de ser “ressuscitado” por meio de tecnologia?
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