A guerra entre Rússia e Ucrânia completa hoje 152 dias. O conflito já contabiliza mais de 47 mil mortes e pelo menos 17 milhões de desalojados. Na tragédia da guerra, as startups do leste europeu também estão sendo gravemente afetadas.
De acordo com Anna Petrova, fundadora e CEO do Startup Ukraine – primeiro centro de empreendedorismo e inovação do país – os negócios ucranianos mudaram radicalmente para poderem se adaptar ao cenário atual, que já dura meses e não tem previsão de fim. “Antes da guerra, éramos mais de 1.700 startups na Ucrânia. Agora, não sabemos dizer ao certo quantas empresas ainda estão de pé. Apesar de tudo o que estamos passando, os empresários estão fazendo o possível e o impossível para ajudar os civis, seja com volutariado, seja criando ou salvando empregos”, explica.
O ecossistema de startups da região, antes da guerra estava despontando, e tem tudo para voltar a ser referência na Europa em inovação e empreendedorismo. O país tem a maior força de trabalho de engenharia de TI na Europa Central, com mais de 130 mil graduados em engenharia e 16 mil graduados em TI anualmente. A indústria de TI ucraniana cresceu quase 46 vezes nos últimos 17 anos, de US$ 110 milhões em 2003 para cerca de US$ 5 bilhões em 2020.
O país também é lar de startups conhecidas em todo o mundo, como o decacórnio Grammarly, a edtech Preply e a PetCube, que cria tecnologia para a supervisão de animais de estimação. Agora o cenário é completamente diferente para as empresas e para seus funcionários. De acordo com o Ministério da Transformação Digital ucraniano, as empresas de TI mantiveram 95% dos contatos e continuaram a aumentar as exportações. “A maioria dos fundadores e CEOs de startups na Ucrânia são homens. Assim, grande parte deles está lutando com o exército para combater a invasão russa. Muitas startups ainda estão em atividade, mas atuando em bunkers”, diz Anna.
Mercado resiste
“Esta é a única indústria exportadora que agora trabalha quase no nível pré-guerra. E o mais importante é que mais de 90% das empresas mantiveram seus clientes. Isso mostra que os clientes já se certificaram de que, apesar da guerra, podemos continuar a trabalhar e fornecer serviços. Isso se deve ao fato de que as empresas uma vez desenvolveram planos de resposta a emergências e os implementaram quando a guerra começou. E esses planos foram implementados com sucesso”, afirma o diretor executivo de TI da Ucrânia, Kostiantyn Vasyuk, à agência de notícias Unian.
O país também afirma ter, pela primeira vez, um exército de TI, com mais de 300 mil membros, especialmente para proteger o estado contra ataques cibernéticos de russos e combater fake news e desinformação global quanto à realidade atual do país.
Para mitigar os efeitos da guerra, o governo ucraniano tem investido fortemente em empresas de tecnologia e na recuperação do empreendedorismo local, mesmo em regiões em que o conflito é mais grave. Os ministérios estão oferecendo bolsas de estudo 100% gratuitas e incentivo financeiro para empreendedores, sejam startups ou empresas tradicionais, que precisem de aporte para exercerem suas atividades. O objetivo é que o ecossistema empreendedor se mantenha minimamente viável para o momento em que a guerra acabar.
O trabalho de Anna, que antes da guerra era gerar capacitação e fomento ao empreendedorismo ucraniano, precisou pivotar para atender às novas necessidades. Hoje, Anna e outros líderes de comunidade ucranianos buscam globalizar as soluções desenvolvidas na Ucrânia, assim como empregar refugiados da guerra. “Nosso plano é empregar pelo menos um milhão de ucranianos ao redor do mundo”, explica ela. Instituições de todo o mundo, inclusive o Sebrae, são foco das iniciativas ucranianas para atingir esse objetivo.
Reflexos na América Latina
Os investimentos em startups gigantes está recuando nos últimos meses. Como já foi amplamente noticiado, fundos como SoftBank e aceleradoras como a YCombinator já prepararam as empresas de seus portfólios para um momento de escassez. Embora a guerra não seja o pivô dessa situação, o conflito tende a agravar esse cenário.
“O excesso de liquidez decorrente do Quantitative easing do Federal Reserve desde a crise de 2008 e os aportes dos vários governos em função da pandemia aumentaram a disponibilidade de recursos para o financiamento de startups. Com muito dinheiro no mercado, ele estava ‘barato’, permitindo a investidores correrem mais riscos. Contudo, com o relativo abrandamento da pandemia e a Guerra da Ucrânia, os Estados Unidos começaram um aperto monetário, assim como vários outros governos, encarecendo o custo do dinheiro. Assim, os investidores estão cada vez mais adorando métricas tradicionais para aportar recursos, como lucratividade, EBITDA, ROI, etc. Essa tendência deve se manter por um bom período”, explica Emmanuel Pessoa, advogado especializado em Inovação e Direito Econômico.
Emmanuel acredita que o maior problema para as startups latino-americanas é que a situação atual encarece o dinheiro e diminui o apetite de investidores por risco, o que deve reduzir aportes do exterior nelas. “Ao mesmo tempo, os capitais locais são mais caros e, com o aumento das taxas de juros, fazem com que os investidores latinos acabem se voltando para investimentos conservadores, como títulos da dívida e renda fixa.”
Por enquanto, o terror da guerra ainda não tem sequer previsão de fim. Mas Anna Petrova já tem planos para quando esse dia chegar: “nós vamos comemorar muito lá em Kiev, com toda a nossa rede de empreendedores, e vamos convidar nossos amigos brasileiros!”.